sexta-feira, 27 de julho de 2012

A irônica normalidade de Carlos


       - A normalidade me cansa. Geralmente, posso cansar de tudo. Se tive alguém na vida, considerada normal, ela passou batida e não deixou nada, apenas uma lembrança sexual. Nenhum ensinamento, nenhum motivo para um convívio ou procura da pessoa. Devo ter perdido lá algumas horas de sexo com ela e, depois, sem uma fala sentimental, abracei-a. Nunca fui atraído por esse tipo de pessoa, elas só incentivaram o meu lado boêmio e fora do padrão. – Assim dizia Carlos, indignado, bebendo absinto naquele bar furreca ali na esquina. O dono do bar olhava e dava algumas risadas, pronto para falar alguma coisa. Talvez pela sua experiência. Acrescentar? Para que? Geralmente, essas pessoas estão aqui para desabafar ou sair da real rotina delas. Mas, mesmo assim, arriscou:
            - Tu procura, na verdade, o enigma, a fase indecifrável do ser humano, rapaz. Tua juventude ainda é latente e aos plenos 25 anos não se procura estabilidade amorosa, e sim conhecimento. – Disse o dono do bar, carrancudo, com sua cara oleosa de fritura de pastel, limpando o balcão e depois de servir mais uma dose de absinto.- Me perguntei muito disso também, mas quando se passa dos 45 tudo se torna tão desesperador, como uma corrida no tempo. Você tem sua casa, seu negócio, sua estabilidade... Por que não também uma mulher normal? Afinal, você se tornou uma peça comum na sociedade e se toca disso depois de tudo que conquistou.

            Carlos por sua vez, da aquela risada inconformada. Pensa que em seu mundo, no qual o sucesso e estabilidade são distante, esse pensamento é de uma pessoa frustrada com suas vivências e confortável com seu meio. Pega seu copo, mata a bebida com uma golada seca e grande, saca a nota de 10 reais e paga o dono, balançando a cabeça com um certo desprezo.

            - Sabe que tua vida poderia ter sido melhor, nessas condições teria me dado um tiro na cara. Uma rotina babaca e estagnada... penso se isso acontecesse comigo. É levantar, comer, dá beijo em sua mulher e conversar sobre o dia-a-dia. Depois vir trabalhar, sem motivo de querer sair daqui ou ir para a casa. Por que tudo está ali, nos seus devidos lugares, previsível e sem sal. E quando chegar em casa? Terá vontade de possuí-la? Sabe que não é a pegada de um sexo inesperado, sabe o que acontece há uns anos, pela tua própria experiência, e tu só está ali por esvaziar o saco.

            - Carlos, vá embora, teu corpo não segura mais uma dose de absinto e, consequentemente, não segura a tua boca. Tua bebedeira sincera e teu pensamento juvenil não irão mudar o mundo.

            - Talvez, Juvê, talvez.

            Levanta da cadeira e vai em direção da porta. Abana sem olhar para trás e segue seu caminho para casa. São quatro e meia da manhã, Carlos. Amanhã você pega o trabalho as 10. Um cálculo mental de quanto poderá dormir, o quanto poderá filosofar sobre isso. Mas o caminho é longo, não se preocupe, terá muito o que pensar... Três quadras dali, Carlos é atropelado. Talvez pela imprudência de um motorista mais bêbado do que o pedestre, ou pela sua latente vontade de morte. Um opala o pega de frente numa faixa de segurança a mais de 80km/h com uma freada brusca. Que ironia, era um conhecido de Carlos fazendo racha! Seu corpo é arremessado por cima do carro, fazendo toda sua vida passar num flash diante de seus olhos. Depois de, praticamente voar e bater de cabeça no chão, seu amigo Daniel sai do carro desesperadamente e o segura.

            - Carlos, como isso foi acontecer? Como não saístes da frente? Como não vistes o sinal amarelo latente? Como não escutastes o ronco do motor, a buzina e as cantadas de pneu? Por que não conseguistes parar?

            Ainda com um pouco de fôlego o sarcasmo toma conta de Carlos, seu sorriso vermelho de sangue mostra uma felicidade estranha, como se não houvesse dor ou acidente.

            - Acho que é meio difícil fugir de um carro depois de alguns copos de absinto, via mais o chão se mexendo do que via seu carro se aproximando... Aliás, vi e senti mais o chão do que o próprio carro. Acho que você vai ter prejuízo.

            Depois de meia hora de espera pela ambulância, que chegara mais tarde que os policiais e toda a multidão que bebia na rua, Carlos morre. Morre com a certeza de que, talvez, preferisse um pouco menos de “sal” em sua vida. Toda aquela sua filosofia tinha um propósito. Samanta era esse propósito. Uma pessoa muito mais normal do que se pensava, que ele amava e por quem ele sofria por saber que seria difícil adaptar-se. Ignorar o fato de que um dia seria como o próprio dono do bar o fez não dar pelo menos um tchau ou adeus a ela depois daquela briga que tiveram há dois dias, tratando-se da sua forma de agir e sua intensidade.


   

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