- A normalidade me
cansa. Geralmente, posso cansar de tudo. Se tive alguém na vida, considerada
normal, ela passou batida e não deixou nada, apenas uma lembrança sexual.
Nenhum ensinamento, nenhum motivo para um convívio ou procura da pessoa. Devo
ter perdido lá algumas horas de sexo com ela e, depois, sem uma fala
sentimental, abracei-a. Nunca fui atraído por esse tipo de pessoa, elas só
incentivaram o meu lado boêmio e fora do padrão. – Assim dizia Carlos,
indignado, bebendo absinto naquele bar furreca ali na esquina. O dono do bar
olhava e dava algumas risadas, pronto para falar alguma coisa. Talvez pela sua
experiência. Acrescentar? Para que? Geralmente, essas pessoas estão aqui para
desabafar ou sair da real rotina delas. Mas, mesmo assim, arriscou:
- Tu procura, na verdade, o enigma,
a fase indecifrável do ser humano, rapaz. Tua juventude ainda é latente e aos
plenos 25 anos não se procura estabilidade amorosa, e sim conhecimento. – Disse
o dono do bar, carrancudo, com sua cara oleosa de fritura de pastel, limpando o
balcão e depois de servir mais uma dose de absinto.- Me perguntei muito disso
também, mas quando se passa dos 45 tudo se torna tão desesperador, como uma
corrida no tempo. Você tem sua casa, seu negócio, sua estabilidade... Por que
não também uma mulher normal? Afinal, você se tornou uma peça comum na
sociedade e se toca disso depois de tudo que conquistou.
Carlos por sua vez, da aquela risada
inconformada. Pensa que em seu mundo, no qual o sucesso e estabilidade são
distante, esse pensamento é de uma pessoa frustrada com suas vivências e
confortável com seu meio. Pega seu copo, mata a bebida com uma golada seca e
grande, saca a nota de 10 reais e paga o dono, balançando a cabeça com um certo
desprezo.
- Sabe que tua vida poderia ter sido
melhor, nessas condições teria me dado um tiro na cara. Uma rotina babaca e
estagnada... penso se isso acontecesse comigo. É levantar, comer, dá beijo em
sua mulher e conversar sobre o dia-a-dia. Depois vir trabalhar, sem motivo de
querer sair daqui ou ir para a casa. Por que tudo está ali, nos seus devidos
lugares, previsível e sem sal. E quando chegar em casa? Terá vontade de
possuí-la? Sabe que não é a pegada de um sexo inesperado, sabe o que acontece há
uns anos, pela tua própria experiência, e tu só está ali por esvaziar o saco.
- Carlos, vá embora, teu corpo não
segura mais uma dose de absinto e, consequentemente, não segura a tua boca. Tua
bebedeira sincera e teu pensamento juvenil não irão mudar o mundo.
- Talvez, Juvê, talvez.
Levanta da cadeira e vai em direção
da porta. Abana sem olhar para trás e segue seu caminho para casa. São quatro e
meia da manhã, Carlos. Amanhã você pega o trabalho as 10. Um cálculo mental de
quanto poderá dormir, o quanto poderá filosofar sobre isso. Mas o caminho é
longo, não se preocupe, terá muito o que pensar... Três quadras dali, Carlos é
atropelado. Talvez pela imprudência de um motorista mais bêbado do que o
pedestre, ou pela sua latente vontade de morte. Um opala o pega de frente numa
faixa de segurança a mais de 80km/h com uma freada brusca. Que ironia, era um
conhecido de Carlos fazendo racha! Seu corpo é arremessado por cima do carro,
fazendo toda sua vida passar num flash diante de seus olhos. Depois de,
praticamente voar e bater de cabeça no chão, seu amigo Daniel sai do carro
desesperadamente e o segura.
- Carlos, como isso foi acontecer?
Como não saístes da frente? Como não vistes o sinal amarelo latente? Como não
escutastes o ronco do motor, a buzina e as cantadas de pneu? Por que não
conseguistes parar?
Ainda com um pouco de fôlego o
sarcasmo toma conta de Carlos, seu sorriso vermelho de sangue mostra uma
felicidade estranha, como se não houvesse dor ou acidente.
- Acho que é meio difícil fugir de
um carro depois de alguns copos de absinto, via mais o chão se mexendo do que
via seu carro se aproximando... Aliás, vi e senti mais o chão do que o próprio
carro. Acho que você vai ter prejuízo.
Depois de meia hora de espera pela
ambulância, que chegara mais tarde que os policiais e toda a multidão que bebia
na rua, Carlos morre. Morre com a certeza de que, talvez, preferisse um pouco
menos de “sal” em sua vida. Toda aquela sua filosofia tinha um propósito.
Samanta era esse propósito. Uma pessoa muito mais normal do que se pensava, que
ele amava e por quem ele sofria por saber que seria difícil adaptar-se. Ignorar
o fato de que um dia seria como o próprio dono do bar o fez não dar pelo menos
um tchau ou adeus a ela depois daquela briga que tiveram há dois dias,
tratando-se da sua forma de agir e sua intensidade.
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